Eu sou mais que um corte de cabelo

31 março 2018

Há alguns dias realizei um dos meus maiores – e talvez o meu único – sonho de infância: cortar meu cabelo curto. Desde criança sempre dizia que queria o cabelo curtinho igual ao do meu pai e era isso que eu falava todas as vezes em que ia no salão cortar o cabelo.
Fui crescendo e esse desejo foi crescendo em mim de uma forma que as vezes eu simplesmente ficava irritada por ter que ficar uns cinco minutos no banho lavando o cabelo. Não que eu odiasse meu cabelo, eu gostava de pintar, fazer alguns cortes diferentes, mas não era aquele o cabelo que eu realmente queria, o cabelo com o qual eu ia ser verdadeiramente feliz com a minha aparência.
Eis que a atriz Alice Wegmann cortou o cabelo dela para a nova séria da Globo e me apaixonei real pelo corte. Não era do jeito que eu queria, mas era um corte bonito que eu sabia que minha mãe não ia encrencar. Conversei com ela e ela disse 'ok'. Eu ia fazer isso por passos. Meu cabelo estava quase abaixo dos seios, então cortei um pouco para baixo do ombro para nós duas nos acostumarmos, mas apenas dois dias depois, logo após ter um intervalo de duas horas entre uma aula e outra, fui com duas amigas em um salão qualquer no centro da cidade que não cobrava quinhentos reais para cortar.
Cortei. Cortei igual da Alice Wegmann. Minha mãe adorou, meu namorado não curtiu muito, meu pai não se importou, ele nunca se importou.

Mas é aqui que começa o negócio. Eu sempre fui uma criança que sempre me vestia e agia de uma forma mais masculinizada, talvez por ter sido mais apegada ao meu pai na infância. Acabei comprando uma bermuda masculina alguns meses atrás, ela combina perfeitamente com as minhas camisas largas - e masculinas - de super-heróis. Meus amigos começaram a me chamar de sapatão e mais ainda de caminhoneira, mas é porque isso sempre foi uma brincadeira entre nós, então eu não me importei e nem nunca vou me importar. Acontece que nem todo mundo vê meu jeito e estilo masculinizado apenas como uma coisa de aparências. Tem gente que realmente acha que eu sou homossexual apenas por um corte de cabelo e uma peça de roupa.
Eu sou mais do que um corte de cabelo. Eu sou mais do que uma bermuda que eu comprei na sessão masculina. Minha sexualidade não está em questão aqui. Meu corte de cabelo é simplesmente algo que eu queria desde que me entendia por gente, é algo que me faz olhar no espelho e me sentir bem com o que eu vejo.

Quando sai do salão, o vento batendo na nuca, nenhum cabelo vindo no meu rosto para atrapalhar minha visão, a sensação que eu tive foi de liberdade. Eu não estava mais presa. Eu não precisava mais ficar prendendo o cabelo em um dia de calor, ou cortar as pontas regularmente para ele não estragar e criar pontas duplas. Eu podia lavar meu cabelo todos os dias que em dez minutos ele secaria. Eu podia correr na rua que ele não entraria na minha frente. Eu podia dormir sossegada porque não teria cabelo me atrapalhando ou sendo puxado quando eu me virasse para o outro lado. Eu me senti livre, eu finalmente me senti eu.


Acontece que nem todo mundo gosta da felicidade alheia. Para as pessoas, cabelo curto em mulher quer dizer que ela é lésbica. Não, nem toda mulher que tem cabelo curto é lésbica e nem toda mulher com cabelo comprido é hétero.
Eu quero continuar me vestindo da mesma forma de antes, da forma que eu gosto. Meu estilo é masculinizado, é despojado e é todo largo porque eu me sinto confortável assim. Eu não gosto de nada me apertando. Eu não vou passar batom ou começar a usar brinco só para quando as pessoas me olharem na rua conseguirem notar que eu sou mulher apesar do cabelo curto. Eu não vou fazer o que as pessoas me dizem para fazer, me obrigar a ser quem eu não sou não é me proteger. Não me importo se as pessoas vão olhar para mim na rua e me achar um homem. Para ser sincera, desde que cortei o cabelo, nenhum homem olhou mais para mim e isso foi maravilhoso. Antes, com o cabelo comprido e bermuda masculina, os homens ainda olhavam para minha bunda de forma sexual, de um jeito que me deixava desconfortável e agora isso não acontece mais. Eu consigo passar na frente de um monte de homens e não receber olhares que eu odeio. Não, a solução para isso não é cortar o cabelo e se vestir igual homem, mas foi o que aconteceu comigo apenas como um detalhe quando realizei meu sonho de infância.

Eu não desapeguei de todo o meu cabelo para ficar com ele apenas um mês e depois deixar crescer. Eu esperei quase vinte e um anos para ter o cabelo do jeito que eu queria e vai demorar para ele chegar sequer próximo ao meu ombro. Eu finalmente tenho o cabelo cortado igual ao do meu pai, até melhor que o dele para ser sincera.

Gif por Lichtberg

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